24 fevereiro 2008

De Montparnasse, Cortázar, Serge Gaisbourg, Jane Birkin...domingo

Julio Cortázar sempre me impressionou com sua literatura. Cortázar, maestro, lecionava em cidades do inteiror argentino. Se "exila" na França com a chegada de Perón ao poder, em 1951, e aí vive até morrer em 1984. Está enterrado no cemitério de Montparnasse. Fui visitá-lo. Seu túmulo está sempre com flores frescas, como se tivesse morrido ontem. Com o cemitério cheio de visitantes tive a impressão de que os franceses, como os argentinos, tem uma queda exagerada para cultuar os mortos. Perto de Cortázar está Serge Gainsbourg (marido de Jane Birkin, Je T´aime Moi Non Plus ) músico e compositor francês. Parece ser a estrela do cemitério: flores frescas e de plástico em quantidade são acompanhadas de cartas recentes e amuletos que cobrem o seu túmulo.

Voltando a Cortázar, ele inspirou uma série de cineasta com seus livros. Blow-up, filme de Michelangelo Antonioni, que vi quando adolescente no Cine Aida, em Artigas, Uruguay, foi baseado em um conto de Cortázar: As Babas do Diabo. Sua obra máxima é Jogo da Amarelinha (Rayuela).

Um conto seu que gosto muito divido agora com vocês. Boa leitura neste domingo!

Continuidade dos Parques
Julio Cortázar
Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns arrendamentos, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado com uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde, e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava, e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da colina.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse, sem dó nem piedade, interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Do caminho oposto, ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um longo corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Desove sua opinião aqui